FORD MODELO A

Já imaginaram um lançamento de automóvel ao qual comparecessem, em um só dia, através da rede de distribuidores, quase 10% da população de um país? Que na primeira semana, esse carro fosse visto por nada menos de um quarto de toda a população? Que fossem necessários literalmente milhares de policiais para conter o entusiasmo popular, extravasado a ponto de quebrarem as vitrinas das lojas de revendas, para poderem ver mais de perto e mais depressa o novo carro?
Pois é, esse sonho de fabricantes, delírio de homens de marketing, pesadelo de concorrentes, aconteceu realmente. Nos Estados Unidos, a 2 de dezembro de 1927, quando exatamente 10.534.992 pessoas quase arrasaram as revendedoras FORD daquele país para conhecer o carro mais badalado e esperado da história do automóvel, o Modelo A, sucessor do fantástico Modelo T.

Para se entender a razão de tanta excitação, é preciso que se recorde e entenda o que estava acontecendo à época.
O mundo ainda vivia uma tremenda euforia pelo fim da mais terrível das guerras, a “guerra das guerras”, a “última das guerras”, em que morreram dezenas de milhões de pessoas – a Primeira Grande Guerra Mundial, iniciada em 1914 e terminada em 1918. A “Década Maluca dos Vinte”, The Roaring Twenties, era a maneira que o mundo tinha de extravasar seu alívio pelo fim de todas as guerras, depois de ter visto de perto a possibilidade do extermínio global. O automóvel, com a liberdade individual e de movimentos que significava e representava, havia se tornado o objeto de maior desejo existente – e, no mundo inteiro, automóvel era o Ford ModeloT.
Ele havia sido responsável pela motorização do globo, tendo vendido quase 15 milhões de unidades desde 1908. Seus proprietários haviam coberto, até meados da década de trinta, uma distância estimada em um trilhão, novecentos e seis bilhões, seiscentos e sessenta e cinco milhões de quilômetros. Como diria Henry Ford em fins de 1927, “bem bom para um pequeno carro”.
Mas, apesar do Modelo T ser universalmente admirado e respeitado, estava começando a não mais ser desejado – e suas vendas estavam caindo. O Modelo T continuava tão bom como jamais fora – mas competidores como Chevrolet e Whippet estavam oferecendo carros mais bonitos, confortáveis, espaçosos e silenciosos, com quase as mesmas características de confiabilidade do T. O mercado estava começando a absorver mais os carros da concorrência e menos os T.
Henry Ford, porém, era um autocrata absoluto. Dentro de sua fábrica, vários diretores acabaram pedindo demissão por verem suas posições renovadoras sistematicamente bloqueadas pelo chefe. Em 1924 a Ford vendeu cerca de 700 mil Modelos T a amais do que todo o resto da indústria automobilística americana em conjunto; em 1925, foram 350 mil a menos; em 1926, apenas um terço do total geral (50% a menos do que os outros reunidos). Henry Ford era um gênio mundialmente reconhecido – e um cabeça-dura incrível. Inconformado com a reação do mercado, simplesmente ordenou que as estatística de produção e venda dos T fossem suprimidas. O que ele não conseguiu impedir foi que a rede de revendedores se fragmentasse – e que o público viesse a saber disso e do porquê da situação.
Ford, porém, estava sozinho dentro de sua própria firma – todos os diretores, inclusive seu filho Edsel (presidente da companhia desde 1909, mas com autoridade totalmente esvaziada pelo pai), clamavam por um novo carro. O que o velho gênio queria era um carro que fosse tão sensacional em 1926 quanto o Modelo T havia sido em 1908 – mas esse novo automóvel extraordinário ainda não tomara forma dentro de sua cabeça. Fazer um carro qualquer jamais seria suficiente para ele. Tinha de ser algo magnífico. O motor, ele já vislumbrava: seu projeto dourado desde 1924, quando o concebeu: 8 cilindros em X, com virabrequim no centro, 4 pares de cilindros em cada extremidade do X, cada par com 1 cilindro atrás do outro. O engenheiro chefe encarregado do desenvolvimento o projeto X era Eugene Farkas e detinha a absoluta confiança do patrão. Farkas relatou a Ford a impossibilidade de sucesso do projeto antes de vários, talvez muitos, anos de trabalho. Mas a companhia precisava de um carro agora.
Em fins de 1926 Ford dera ordens orais (informais) a alguns de seus engenheiros para que começassem a pensar seriamente no sucessor do T. Em janeiro de 1927, as primeiras plantas ficaram prontas, pressupondo um entre eixos ( 103,1/2 pol ) e um comprimento total de chassi( 113,7/16 pol) definidos. O motor seria um 4 cilindros (“um 6 tem todas as dificuldades de engenharia de um 8 e nenhuma de suas vantagens - além disso, um monte de gente já o tem, e a Ford nunca segue ninguém: lidera”. Ford não queria substituir o Modelo T a não ser pelo X ; uma vez, porém, que percebeu não ser possível esperar pelo X ou protelar o trabalho do novo 4 cilindros, dedicou-se de corpo, alma e gênio ao novo projeto. Pegou seus melhores homens de engenharia – Parkas, Frank Jhonson (da Divisão Lincoln), Joseph Galmb (do Modelo T), Laurence Sheldrick, Pete Martin, Charles Sorensen e Edsel Ford – e passou a morar praticamente na fábrica. Em julho de 1927, Fez 64 anos de idade; entrevistado pelo The New York Times, disse textualmente: “ Sessenta e quatro anos hoje, e tenho o maior trabalho de minha vida à frente.” Velho demais para mudar (na realidade ele nunca na vida mudou), Ford manteve sua incomum e nada convencional filosofia de construtor de automóveis: o que o público pensa que quer é de importância secundária; o lucro é uma decorrência; o que realmente interessa é a integridade do produto. O resultado atuarial dessa filosofia aliada a um programa de engenharia quase louco foi um gasto(investimento?) que o próprio Ford nunca soube definir com precisão: indagado, estimou-se em 100 milhões de dólares, mas os observadores da indústria sempre colocara uma estimativa realista como 250 milhões.
Curiosamente, Ford não acreditava em laboratórios e cientistas.

O jeito dele construir um automóvel era desenhar peça por peça, mandar construí-la na seção de Protótipos e destruí-la na Experimental. Por outro lado, toda peça que entrasse num carro teria de ser simples, eficiente, leve e resistente. A famosa suspensão por eixos rígidos e molas transversais à frente e atrás, que carregou o Modelo T a todos os cantos do mundo, tinha de ser mantida, embora todos os concorrentes tivessem passado a utilizar molas laterais, uma para cada roda. Ford, porém, acreditava que sua suspensão era mecanicamente superior, já que suportava seu próprio peso, sem transferi-lo aos eixos, permitindo que eles fossem mais leves, assim como seus rolamentos. Um dia, pegou um carro de provas e enfiou-o corcovejante através de um campo mal cuidado.Achou o carro duro demais, especialmente comparado com os Lincoln que utilizava. Por que apenas os ricos deveriam andar em carros macios? A grande diferença entre a suspensão de Lincoln e a do Modelo A era que o carro topo-de-linha da sua companhia vinha equipado com amortecedores hidráulicos Houdaille de dupla ação.
Eles eram caros – mas ficariam mais baratos se fabricados em grandes quantidades. Ford não teve dúvidas: ordenou seu uso no Modelo A. Quando souberam disso, seus concorrentes puseram as mãos na cabeça: onde já se viu acessórios tão caros serem equipamento padrão em carros pequenos e populares? Claro que, anos após, todos os seus concorrentes tiveram de equipar seus carros com amortecedores hidráulicos, dupla ação. Mas a Ford, mais uma vez, estava liderando a indústria – e isso importava quase tanto quanto ao fato de seus carros. Para o dono da empresa, serem superiores a todos os concorrentes.
O motor 4 cilindros do A deveria ser capaz de desenvolver 40 CV a um regime máximo de 2.200 rpm. O motor do Modelo T, de cilindrada muito próxima à do novo, desenvolvia apenas 20 CV. Ford, ao tempo, construía também aviões (Ford Tri-Motor, famoso por vôos sobre a Antártida), e um de seus homens de confiança era o engenheiro aeronáutico Harold Hicks. Ford chamou-o, perguntou quanto tempo ele necessitava para fazer o motor desenvolver a potência desejada. Hicks respondeu que pelo menos dois meses. Ford deu-lhe um, Hicks completou serviço em três semanas, desenhando o múltiplo de admissão, abrindo passagens de água ao redor das válvulas de exaustão, caules de válvulas com “pés” tipo cogumelo, e um carburador Zenith em lugar do Holley tradicional. Ford recusou o carburador para ficar com apenas dois parafusos, mas Ford ainda achava que era demais. O carburador voltou à Zenith, que passou a fabricá-lo com apenas um. Ford complicou as coisas ainda mais, do ponto de vista dos engenheiros, tentando descomplicá-las para os eventuais compradores do carro: exigiu um comando único de ajuste e afogamento do carburador, comando esse a ser colocado no painel de instrumentos. Esse comando tornou o ajuste da alimentação de combustível tão simples quanto a eliminação do avanço manual do distribuidor seria pouco depois.
Henry e seu filho Edsel tiveram outro momento(meses) de problemas de relacionamento quando Edsel insistiu na utilização de uma caixa de mudanças de engrenagens deslizantes, em lugar da planetária do Modelo T. Henry queria uma transmissão planetária automática, mas seu desenvolvimento levaria também alguns anos e a planetária do Modelo T não agüentaria o torque do novo motor. O engenheiro Frank Johnson, da Lincoln, desenhou em escala menor a transmissão dos grandes e adaptou ao Modelo A. Edsel Ford, apesar de não possuir autonomia na companhia do pai, da qual era presidente, tinha sólida reputação como desenhista de carroçaria(da década de 40 à a de 70 seria chamado de estilista, atualmente de desenhista atual). Ele deu forma final à carroçaria do A e resolveu a questão do posicionamento do tanque de gasolina, colocando-o à frente curvão( parede fogo entre o motor e o compartimento de passageiros) e abaixo do pára-brisa, harmonizando a transição entre o cofre do motor e o resto da carroçaria. Essa solução agradou imensamente á Henry Ford, pois possibilitou a alimentação natural do motor, por gravidade, sem necessidade de bomba ou sistemas de vácuo, que ele abominava.
O anuncio oficial de que o Modelo T seria substituído foi feito a 25 de maio. O próprio de que Henry Ford impôs censura rígida, de segredo de Estado, ao que se fazia em sua firma, provocou verdadeiras ondas especulativas na Imprensa. Nunca tantos jornalistas deram tanta atenção – e disseram tanta besteira – sobre uma só firma e um só produto, como naquele 6 meses de 1927. O novo carro mundial(àquele tempo!) teria motor a gasolina de 4,6,8 ou 12 cilindros, a qualquer um deles, dependendo do modelo do carro e seu preço; teria motor Diesel de bolso(!); seria elétrico a energia solar...os paparazzi do tempo fotografaram tudo que aparecesse pela frente, na esperança de ‘'acertar'' o novo carro. Quando a maré especulativa começou a diminuir um pouquinho, Henry Ford fez um anúncio oficial sobre o novo carro: ‘' O novo automóvel Ford é um fato consumado...Os problemas de engenharia... foram todos resolvidos...Os testes demonstram que ele é mais veloz, macio, resistente e flexível do que o esperado nos estágios iniciais do projeto...Atinge com facilidade 105km/h...”
A maré especulativa virou histeria de adivinhação.
A publicidade paga envolveu inserções de página inteira durante cinco dias seguidos em todos os dois mil jornais dos Estados Unidos – a um custo global de um milhão e trezentos mil dólares – uma fortuna à época, mas apenas uma ínfima parte do que aqueles mesmos jornais, e todas as revistas e rádios do país, haviam ‘'doado'', em matérias e espaço editoriais, à companhia.
O resultado foi, realmente, o mais visto show de todos os tempos.
O carro? Sensacional. No Brasil, ficou conhecido como Ford 29, considerado pelos mais velhos como o melhor carro de todos os tempos. Embora fosse na realidade o Ford de 1928, 29, 30, 31 e até mesmo 32. Quase cinco milhões deles, no mundo inteiro. Um digno sucessor do Modelo T – e antecessor do Ford V8, que chegou em 1932 para gáudio de todos aqueles que gostavam de velocidade e raça.

Fonte
Revista Motor 3 – Carros, motos, barcos, aviões – Julho 1981